Brasil, segundo dados da International Finance Corporation (IFC), tem 10 milhões de empreendedoras. Segundo o relatório “Panorama do Empreendedorismo Feminino no Brasil”, 23% da força de trabalho feminina atua como empreendedora por conta própria.
Anderson Viegas

Heloisa Alves de Goes, ou simplesmente “Dona Helô”, como é conhecida em Bataguassu, cidade de 24 mil habitantes no leste de Mato Grosso do Sul, é uma inspiração para quem pretende empreender. Aos 73 anos, essa viúva, mãe de oito filhos, avó, costureira autodidata, que vendia panos de prato pintados, bordados e peças de crochê em sua vizinhança para reforçar um pouquinho a renda, teve a oportunidade e não pensou duas vezes em ingressar em um projeto que tinha a perspectiva de mudar a vida de mulheres como ela em seu município, gerando renda a partir do que antes era resíduo.
O olhar doce e sereno e a fala mansa, pausada, de Dona Helô só se modificam quando ela trata do projeto Costura Sustentável. Com a alegria de uma criança e ânimo renovado, a vovó empreendedora conta que, depois de aceitar o convite, participou de várias capacitações junto com as outras integrantes — inclusive de design — para utilizar da melhor maneira possível a matéria-prima disponibilizada a elas: EPIs usados e bags de fertilizantes. Com isso, passaram a produzir peças com qualidade e alto valor agregado, como bolsas, mochilas e acessórios de moda. O grupo, com 25 mulheres, agora formalizado na Associação Ipê Rosa, já expôs seus trabalhos no Bioparque Pantanal, em Campo Grande, e no Shopping Três Lagoas, e começa a vender suas peças e receber encomendas.

“Peguei essa oportunidade de braços abertos e não largo mais. Enquanto tiver coragem, tiver saúde, eu vou estar lá, produzindo, viajando para divulgar nosso trabalho. O que eu mais gosto disso tudo é da convivência com as outras pessoas. De saber que, todas juntas, estamos produzindo coisas muito lindas a partir do que era resíduo, lixo, e que lá na frente vamos vendê-lo e dividir o resultado. E, com isso, vamos todas crescer juntas. Isso emociona muito”, diz Dona Helô.
O Costura Sustentável começou em fevereiro de 2024, com 32 mulheres — algumas em situação de vulnerabilidade social — participando da iniciativa. Elas receberam capacitações voltadas ao empreendedorismo, gestão de negócios e técnicas de costura. Também foi montado um espaço com 24 máquinas de costura para os treinamentos e produção das peças. O grupo recebeu ainda a orientação do designer Renato Imbroisi para o desenvolvimento de uma coleção autoral e criação de um catálogo de produtos.
“Todo o design dos produtos, toda a organização, formalização da associação, todo esse aparato de levar realmente a capacitação para elas — de como costurar, como fazer, qual o desenho desses produtos. A gente trouxe especialistas, pegamos os maiores especialistas em artesanato nessa área para trazer e acompanhar lá. Fizemos um investimento alto em capacitação, em conhecimento e agora em trazê-las para colocar esses produtos no Bioparque, no shopping, em Três Lagoas, para que elas possam vender também”, explica o diretor-superintendente do Sebrae/MS, Claudio Mendonça.
O gerente de Relações Institucionais da MS Florestal, Bruno Madalena, aponta que o projeto é contínuo e promissor. “As meninas, antes, não eram organizadas. Hoje, elas têm uma associação, uma produção. Esse projeto só tem a crescer, não existe prazo de validade. E mais do que técnica, a gente olha para mulheres em situação de vulnerabilidade e oferece oportunidade de transformação.”
Quer conhecer um resumo da trajetória inspiradora de Dona Helô? Veja na HQ abaixo!

Panorama do Empreendedorismo Feminino
Mulheres como Dona Helô e as integrantes da Associação Ipê Rosa estão entre as 10 milhões de empreendedoras do Brasil, segundo dados da International Finance Corporation (IFC) — agência do Banco Mundial voltada para o desenvolvimento do setor privado em países emergentes.
A entidade aponta que, em um cenário em que 52% dos lares no país são chefiados por mulheres, 57% dessas famílias vivem abaixo da linha da pobreza. Nesse contexto, o IFC destaca que o empreendedorismo por necessidade é mais comum entre as mulheres (45%) do que entre os homens (34%).

O relatório “Panorama do Empreendedorismo Feminino no Brasil”, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) em parceria com o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, divulgado em 2024, apresenta um retrato ainda mais detalhado da participação das mulheres no mundo dos negócios. Para acessar clique aqui!
Segundo o levantamento, 23% da força de trabalho feminina atua como empreendedora por conta própria, percentual inferior ao registrado entre os homens, onde esse grupo representa 34% da força de trabalho masculina. O segmento conhecido como “conta própria” inclui tanto trabalhadoras autônomas quanto proprietárias de negócios sem empregados formais, como é o caso de muitas Microempreendedoras Individuais (MEIs).
No grupo das “empregadoras” — ou seja, aquelas que possuem pelo menos um funcionário remunerado —, a presença feminina também é menor: apenas 3% das mulheres na força de trabalho ocupam essa posição, contra 5% dos homens. No entanto, o estudo destaca um dado importante: quando conseguem romper as barreiras estruturais e alcançar o posto de empregadoras, as mulheres geram empregos em um nível semelhante ao dos homens, demonstrando grande capacidade de liderança e gestão.
Apesar desse potencial, a desigualdade de rendimentos ainda é marcante. O relatório mostra que as mulheres empreendedoras — somando as que atuam por conta própria e as empregadoras — ganham, em média, 20% menos por mês do que os homens. Enquanto o rendimento médio mensal das trabalhadoras por conta própria é de R$ 1.459, entre as empregadoras esse valor sobe para R$ 4.818. A média geral das empreendedoras fica em R$ 3.139, o que representa uma diferença de quase 25% em relação aos empreendedores homens.
A publicação conclui que o fortalecimento do empreendedorismo feminino no Brasil é um caminho estratégico para reduzir a desigualdade de gênero na renda e no mercado de trabalho. Para isso, é essencial avançar em políticas públicas que garantam acesso a crédito, capacitação, redes de apoio e reconhecimento às mulheres que decidem empreender.
Apoio

Desde 2022, a IFC, em parceria com o Sicredi MS/TO e Oeste da Bahia, desenvolve um programa de apoio ao empreendedorismo feminino, o “Donas do Negócio”. “Em 2021, o Sicredi nos procurou [IFC] para desenvolver essa iniciativa de inclusão financeira das mulheres empreendedoras. Já tínhamos outras parcerias com eles, e a cooperativa veio falar conosco. Foi uma inspiração do próprio Luiz Guilherme, que é diretor da cooperativa, porque a esposa dele é empreendedora. E foi assim que o programa nasceu, em 2022. Ele foi lançado aqui”, explica Amanda Franco, consultora de projetos para instituições financeiras na IFC.
Ela comenta que o Sicredi já realizava com excelência o trabalho tradicional de instituição de crédito cooperativo, oferecendo produtos e serviços financeiros para as empreendedoras, mas que essa atuação poderia ser ampliada. “Entendemos que poderíamos ir além, criar soluções de capacitação, trazer informação para elas, promover conexões — porque isso também é um desafio das empreendedoras brasileiras: não terem muitas conexões dentro do empreendedorismo, que é o que possibilita o crescimento. É trocando experiências que aprendemos, que fazemos negócios. Então, queríamos trazer um programa que oferecesse tudo isso, junto com os produtos e serviços financeiros que a cooperativa já realizava. E hoje, já são cerca de 4,5 mil mulheres atendidas.”

Entre as mais de 4,5 mil participantes do programa está Reinilda Rezende de Oliveira, de 68 anos. Ela mora no bairro Jardim Imá, em Campo Grande, onde, em 2000, começou sua trajetória como empreendedora a partir de uma receita de pão caseiro. Viúva desde o ano 1999 e com quatro filhos para criar, encontrou no empreendedorismo uma forma de complementar a renda da família. Com fermento natural e muita dedicação, nascia o que mais tarde se tornaria a marca Pão de Cristo.
Reinilda começou produzindo cerca de 15 pães por dia em sua própria cozinha. Colocava os pães ainda quentinhos em uma cesta e saía pelas ruas do bairro e redondezas para vendê-los de porta em porta. “Era uma forma de ajudar em casa. Meus filhos estavam crescendo e eu precisava dar conta das contas”, relembra.
Com o apoio do Sebrae/MS, formalizou sua atividade como Microempreendedora Individual (MEI) e começou a planejar voos mais altos. O ponto de virada veio em 2018, quando ganhou de presente do pai um forno industrial. A produção saltou para 48 pães por dia e, com isso, Reinilda deixou o carrinho de feira e passou a fazer as entregas de carro, levando seus produtos a locais mais distantes.
Foi também nesse período que ela reformou um espaço em casa para transformá-lo em cozinha de produção, comprou maquinário e decidiu dar nome ao sonho: Pão de Cristo, uma homenagem à receita original que deu início a tudo. Deixou de ser MEI e abriu uma microempresa no Simples Nacional, ampliando o cardápio com pão de queijo, chipa e bolo de goma.
Hoje, aos 68 anos, Reinilda ainda trabalha sozinha, responsável por todo o processo: da produção à entrega em diversos estabelecimentos da região. E mesmo com a agenda cheia, divide com os quatro irmãos o cuidado com os pais idosos. A cada semana, um dos filhos se dedica integralmente a eles. “Na minha semana, não produzo nada. Abasteço os pontos de venda antes e fico 100% com meus pais”, conta.
Ao analisar sua trajetória como empreendedora, responde com serenidade. “Estou feliz, satisfeita. Foi essa iniciativa que me trouxe até aqui, mesmo com tantas dificuldades.”
Quer ver um resumo da história de Reinilda? Veja na HQ abaixo!

Resiliência
Em Corumbá, empreendedoras da Associação de Mulheres Organizadas Reciclando Peixe (Amor Peixe), demonstram o quanto é importante a resiliência e a força-vontade para se manter no trabalho. Mesmo diante de uma série de desafios elas seguem firmes em um projeto que é sinônimo de geração de renda, sustentabilidade e superação. Criada em 2003, a entidade transforma o couro de peixe — que antes era descartado como resíduo — em peças de artesanato sofisticadas, como bolsas, carteiras, brincos e chaveiros.
Atualmente, a associação é composta por quatro integrantes: Francisca Garcia da Silva (presidente), Gisele Garcia da Silva (secretária), Miguidonia Clementina Noguera Arzamendia Penha (tesoureira) e Guilhermina Batista do Nascimento (vice-presidente). Unidas pela arte e pela necessidade, elas mantêm viva uma iniciativa que começou com um curso de geração de renda voltado para famílias de pescadores da região.

“O projeto nasceu de uma oportunidade. Eu mesma entrei sem direção nenhuma, era uma jovem da comunidade. Tive a chance de participar e, hoje, estar à frente da associação não é pelo ganho financeiro, mas para retribuir a oportunidade que tive. Quero manter essa porta aberta para outras mulheres também”, conta, emocionada, a presidente Francisca.
As peças da Amor Peixe já circularam por feiras em diversos estados brasileiros e até fora do país, como na Holanda e no Japão. A associação já chegou a ter mais de uma dezena de integrantes e um portfólio de mais de 40 produtos. Atualmente, o grupo está menor, mas a força de vontade segue firme.
“Temos couro estocado, peles de tilápia que compramos congeladas de um frigorífico em Itaporã. Aqui em Corumbá, é difícil conseguir couro porque não há piscicultura e o peixe é consumido inteiro, com couro”, explica Francisca, completando que elas continuam atendendo pedidos sob encomenda e participando de feiras e eventos. “Fui pela primeira vez a uma feira em Curitiba e foi uma experiência incrível. Voltando, já teve o Festival América do Sul aqui, e continuo aprendendo, agora até com moda e design de roupas. Isso é o que nos impulsiona.”
A associação já recebeu apoio de entidades como WWF-Brasil e atualmente conta com suporte do Sebrae/MS em eventos regionais e participando da plataforma de comercialização Made in Pantanal. “O que a gente tem hoje é médio, vende um pouco aqui e ali. Mas acreditamos que tudo vai melhorar. Temos fé e não podemos perder a esperança”, afirma a presidente.
Segundo Francisca, além das quatro integrantes fixas, há outras artesãs que aguardam uma oportunidade para voltar a produzir, caso surjam encomendas maiores. “Tem gente que já chega perguntando: ‘E aí, Francisca, já pegou aquela encomenda grande?’. O desejo de continuar está vivo em todas nós.”
Para Francisca, mais que uma atividade econômica, a Amor Peixe representa resistência e transformação social. Em meio aos seus desafios, o grupo segue criando, costurando e ressignificando o que antes era descartado. “Quando alguém me chama de presidente, eu até me emociono. Olha onde eu cheguei! Tudo isso graças a uma oportunidade. Agora quero que outras mulheres também possam sonhar e realizar”, conclui.
Conheça abaixo a versão HQ da história de Francisca e das empreendedoras da Amor Peixe!

Made in Pantanal
A Associação Amor Peixe, de Corumbá, é um dos mais de 200 grupos produtivos que integram a plataforma Made in Pantanal, iniciativa do Sebrae/MS lançada em 2022 para fortalecer o mercado de produtos com identidade pantaneira.
Segundo Isabella Fernandes Montello, gerente da Unidade de Competitividade e Inovação do Sebrae/MS, o projeto foi criado para promover comercialmente produtos feitos por empreendedores da região. “É uma plataforma digital de comercialização, mas mais que isso: é uma estratégia de valorização da cultura e da narrativa pantaneira por meio dos produtos. A ideia é agregar valor e levar esses itens para feiras, eventos e novos mercados”, explica.

Além da conexão com o território, o projeto também impulsiona o empreendedorismo feminino, característica marcante entre os participantes. “Boa parte dos empreendedores do Made in Pantanal são mulheres. Muitas começaram conosco e outras redescobriram o potencial de seus negócios ao perceber que seus produtos carregam uma história, uma identidade. Isso gera pertencimento, orgulho e novas oportunidades de renda”, destaca Isabella.
Cerâmica e ancestralidade

Outra empreendedora que integra o projeto Made in Pantanal é a ceramista Janir Gonçalves Leite, de 58 anos, indígena da etnia Terena, nascida na aldeia Taunay/Ipegue, em Aquidauana (MS). À frente da marca Turu Arte da Terra, Janir encontrou no barro não apenas uma matéria-prima, mas um elo com sua ancestralidade, com a cultura do seu povo e com sua identidade como mulher empreendedora.
“Minha avó fazia cerâmica. Ela produzia potes para armazenar grãos, sementes, água… cresci vendo isso. Hoje, mesmo usando técnicas mais modernas, como o forno elétrico e argila comprada, eu carrego na minha produção toda essa simbologia”, conta Janir.
Cada peça, moldada manualmente, traz grafismos tradicionais terena nas cores preta, vermelha e branca, como uma forma de manter viva a cultura de sua comunidade. Mesmo sem utilizar atualmente os pigmentos naturais, Janir busca resgatar o azul que sua avó usava — um projeto que envolve também apoio técnico de pesquisadores.
Participante ativa de feiras e exposições nacionais, suas obras já chegaram à Holanda e à Itália. Além da arte, o que move Janir é a força de representar as mulheres de sua etnia no empreendedorismo. “Ao empreender, a mulher conquista sua liberdade. Muitas vezes vivem à sombra de alguém, mas, quando percebem que podem gerar renda com aquilo que sabem fazer, desabrocham. Isso transforma vidas”, afirma.
Apesar de atuar como servidora pública, Janir encontra na cerâmica uma importante fonte de renda e realização pessoal. Com sua experiência e autonomia, ela inspira outras mulheres da comunidade, mostrando que é possível manter viva a tradição e, ao mesmo tempo, abrir caminho para novas oportunidades.
Veja abaixo a história de Janir em quadrinhos: ancestralidade, arte e empreendedorismo!

O desafio emocional
Assumir um negócio próprio é, para muitas mulheres, mais do que uma decisão profissional — é um enfrentamento psicológico e social. Segundo a psicóloga Maura Gabriela Oliveira, formada pela UFMS e mestranda em Psicologia pela mesma universidade, o caminho do empreendedorismo feminino ainda é cercado por cobranças internas e externas que dificultam o avanço das mulheres.
“A síndrome da impostora é um dos principais obstáculos. Essa mulher questiona se é capaz, se está abandonando o lar, os filhos, a casa. Soma-se a isso a sobrecarga: ela sai para empreender e, ao voltar, ainda carrega o peso do trabalho doméstico”, explica Maura, que atua como psicóloga clínica e é sócia da clínica Serene Psicologia, especializada em psicoterapia individual e avaliação psicológica.
Para superar esses entraves, ela reforça a importância de redes de apoio emocional. “Terapia individual ajuda essa mulher a entender suas dificuldades e a fortalecer sua autoconfiança. Mas os grupos também têm um papel importante: workshops, mentorias com outras empreendedoras e espaços de escuta coletiva fazem com que ela perceba que não está sozinha — que pode falhar e recomeçar, e que isso faz parte do processo.”
O suporte emocional, portanto, é tão estratégico quanto o planejamento financeiro. O empreendedorismo feminino segue crescendo, mas para florescer plenamente, precisa de estruturas que acolham e fortaleçam essas mulheres por dentro e por fora. Veja mais no vídeo abaixo:
Veja abaixo uma galeria de imagens da reportagem:














