Com o aumento dos registros de chuvas intensas e alagamentos, o município tem ampliado os investimentos em drenagem e trabalhado em parceria com a concessionária Águas Guariroba para evitar que episódios de instabilidade climática causem sobrecargas, extravasamentos e danos estruturais à rede de esgoto, atualmente em expansão. Apesar do esforço conjunto, Campo Grande tem concentrado suas ações em obras estruturais de grande porte, deixando em segundo plano soluções sustentáveis que poderiam aproveitar melhor o potencial natural da cidade para mitigar os impactos das chuvas e promover maior equilíbrio ambiental.
Anderson Viegas
Campo Grande enfrenta desde 2019 a intensificação de eventos climáticos extremos que têm provocado chuvas intensas, enxurradas e alagamentos em diferentes regiões da cidade. Segundo o Atlas Digital de Desastres Naturais no Brasil, do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), levantamento de dez anos feito pelo Made in MS mostra que, entre 2014 e 2023, até a primeira metade do período, ou seja, até 2018, o número de ocorrências registradas no órgão federal era relativamente estável e baixo, com média anual de 1,8 evento e pico de, no máximo, quatro registros, alcançado em 2017. A partir de 2019, no entanto, houve uma mudança expressiva: o total de registros subiu de seis naquele ano para nove em 2020, sete em 2021 e atingiu o ápice em 2022, com 33 ocorrências, um aumento de mais de 725% em relação ao maior valor da série anterior. Veja mais detalhes nos infográfico logo abaixo!

Segundo o meteorologista da Uniderp, Natálio Abrahão, Campo Grande tem uma média histórica de precipitação anual de 1.430,2 milímetros, sendo o mês de dezembro o mais chuvoso, com volume oscilando entre 206,5 milímetros e 212,5 milímetros, em média, e julho o menos chuvoso, com 25,1 milímetros. Ele comenta que não houve mudanças expressivas nesse volume ao longo dos anos, mas que vem ocorrendo uma alteração na forma como as precipitações acontecem. “Até o século passado chovia 50 milímetros dentro de dois, três, quatro dias. Atualmente isso ocorre em um dia ou até em algumas horas.”
O fenômeno citado por Natálio reflete uma tendência observada globalmente: a concentração de chuvas em períodos curtos e de alta intensidade. Além do componente climático, o impacto urbano também é relevante. A impermeabilização do solo, a expansão desordenada e a limitação dos sistemas de drenagem agravam os efeitos das chuvas, transformando precipitações intensas em alagamentos e enxurradas. O aumento da frequência e da severidade desses eventos reforça a necessidade de políticas integradas de adaptação urbana, monitoramento hidrológico e infraestrutura resiliente ao clima, sobretudo nas áreas de risco da capital sul-mato-grossense.
Segundo o secretário municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos (Sisep), Marcelo Miglioli, uma condição da cidade agrava o problema. “Campo Grande tem uma característica que é ter chuvas torrenciais, às vezes, em pontos localizados, não na cidade toda. Isso gera pontos de alagamento. Nós temos também algumas situações na cidade que ocorrem por conta de pavimentos feitos, no passado, sem drenagem, e aí não é nenhum tipo de crítica ao passado, cada momento é um momento. Temos ainda uma situação em que, às vezes, ruas não pavimentadas, ou seja, sem drenagem, o volume de água acumula em algum ponto baixo e gera alagamento. Então, são situações que convivemos e estamos tentando minimizar por meio de obras de engenharia.”
O secretário explicou que, dos dois pontos da cidade onde os alagamentos eram mais frequentes e provocavam situações críticas, um já teve o problema solucionado e o outro está recebendo intervenções. “Dos dois pontos mais críticos que nós temos na cidade, um foi resolvido, que era no encontro da avenida Afonso Pena com a rua Paulo Coelho Machado, no entorno do Shopping Campo Grande e do Parque das Nações Indígenas. Com a bacia de contenção feita na esquina da avenida Mato Grosso com a avenida Hiroshima, aquele problema foi sanado”, afirmou.
Ele acrescentou que o outro ponto crítico, localizado no cruzamento da avenida Ernesto Geisel com a rua Rachid Neder, ainda apresenta “alagamento muito pesado” e requer diversas obras de engenharia, incluindo a implantação de uma bacia de contenção. “Temos avançado bastante”, destacou. Veja abaixo a entrevista completa de Miglioli ao Made in MS.
Miglioli diz que o município já tem mapeados os pontos que geram alagamentos com mais frequência e os que são sazonais. “Dependendo da chuva, muitos pontos podem gerar ou não. Nos casos mais simples, já temos buscado a solução. Por exemplo, na rotatória da Coca-Cola [cruzamento das avenidas Gury Marques e Interlagos], na última ‘chuvarada’, tivemos vários alagamentos ali. Fizemos então uma boca de lobo e uma travessia, e o problema foi resolvido. Alguns, obviamente, requerem obras de engenharia muito pesadas e aí temos de conviver com eles até termos condições de atuar fortemente. Por exemplo, na região do Lago do Amor [avenida Senador Filinto Muller], foi feita uma obra ali que melhorou muito a condição, mas não resolveu definitivamente o problema. Já temos mapeada qual é a solução, mas é uma obra que requer em torno de R$ 20 milhões de investimento. Então, estamos buscando esses recursos para resolver esse problema definitivamente também.”
O secretário admite que a estrutura de drenagem atual do município é insuficiente para fazer frente aos eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes. “Temos um passivo pesado na cidade. Campo Grande tem mais de 950 mil habitantes e mais de mil quilômetros de vias não pavimentadas que não têm drenagem. Isso gera um problema sério. Não tem como fazer drenagem sem executar junto a pavimentação. Então, precisamos de um volume substancial de recursos para resolver definitivamente esse problema, mas temos avançado”, pontua.
Ele defende que é equivocada a visão de que, ao pavimentar uma via, se impermeabiliza o solo, dificultando a drenagem. “É o contrário. O asfalto, desde que executado com a drenagem, é bom. É uma forma de canalizar a água e depois dar uma destinação correta a ela. Por isso, muitas de nossas obras de pavimentação hoje já estão sendo feitas com bacias de contenção e amortecimento. Elas têm duas finalidades: conter esse volume de água para evitar enchentes e amortecer também a força dessa água, para que ela chegue ao seu destino final, que são os córregos, de forma mais branda.”
Miglioli ressalta que, para evitar a repetição de falhas do passado, a nova legislação da prefeitura de Campo Grande não autoriza nenhum tipo de loteamento, seja fechado ou aberto, que não venha acompanhado de toda a infraestrutura necessária, ou seja, pavimentação e dispositivos de drenagem. Além disso, ele comenta que a atual gestão tem investido fortemente em obras de pavimentação em bairros já implantados, 20 atualmente, com drenagem das vias. “Temos ainda muita coisa para fazer”, ressalta, completando que, mesmo com esses esforços, chuvas torrenciais, com volumes de água entre 70 e 80 milímetros em curtos períodos de tempo, de 40 minutos a uma hora, ainda podem gerar problemas sérios para a cidade.
Nas imagens acima, à esquerda, o alagamento registrado na região entre a rua Paulo Coelho Machado e a avenida Nelly Martins, próximo ao Shopping Campo Grande, em janeiro de 2023; e, à direita, para impedir alagamentos como esse, a prefeitura construiu uma bacia de contenção no cruzamento das avenidas Mato Grosso e Hiroshima, em operação desde julho de 2024.
Entre as obras viárias com dispositivos robustos de drenagem, já com bacias de contenção e amortecimento, o secretário cita as iniciativas nas regiões dos bairros Noroeste, Nova Lima e North Park, entre outras. Ele destacou a importância das parcerias para a execução desses projetos de saneamento. “O município depende das parcerias, e nós temos hoje parcerias com os governos federal e estadual e ainda com a bancada federal, além de contarmos com recursos próprios”, detalhou.
O secretário destacou a importância das obras de drenagem e pavimentação como uma das principais ferramentas para a resolução do problema. “O asfalto é qualidade de vida e, ao mesmo tempo, a gente resolve o problema da drenagem e das enchentes.”
A implementação de outras alternativas para o enfrentamento do problema, como o sistema cidade-esponja, que consiste em projetos urbanos que reproduzem os processos naturais do solo para absorver, reter e reutilizar a água da chuva, combatendo enchentes e promovendo equilíbrio ecológico, segundo ele, requer estudos e análises conduzidos por outros órgãos do município, como a Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano (Planurb).
“Essa é uma parte que é mais focada na área da Planurb, que é planejamento. A cidade-esponja é um conceito de se ter áreas em que se possa ter a absorção da água, fazer com que essa água não corra tanto. Campo Grande é uma cidade muito rica em áreas verdes, em áreas que fazem essa absorção. Agora, eu sou muito tranquilo no meu posicionamento. Essa absorção não pode ser considerada nas áreas de rua. A área de rua tem que ser pavimentada. A cidade precisa vencer esse passivo, porque, senão, não resolve o problema, inclusive nas questões ambientais. Porque uma rua que não é pavimentada, além de gerar um problema de desconforto e má qualidade para a população, pode causar um problema de enchente e de assoreamento dos nossos córregos. Uma grande parte do material que é carregado para os córregos vem das ruas e aí não há como conter. No período de chuva, em muitos bairros, você vai encontrar erosões no meio da rua, porque essas águas têm que ir para algum lugar. Uma vez que essa água não vai canalizada através de uma tubulação, que é estruturada para aquilo, ela vai correr aberta, fazendo estrago”, analisa.
Outro desafio em relação à drenagem do município, conforme o secretário, é mapear toda a rede de Campo Grande. “Esse é um dos grandes problemas, na minha opinião, que enfrentamos. Estamos buscando recursos para fazer um levantamento cadastral de toda a nossa drenagem. A cidade não tem esse levantamento cadastral, e isso é uma situação falha. Eu, como engenheiro, como secretário de Infraestrutura e Serviços Públicos, acho que temos que resolver, precisamos de recursos. Hoje, para fazer esse trabalho, mesmo que seja um levantamento superficial de toda a estrutura de drenagem já existente no município, estamos falando de um investimento em torno de R$ 10 milhões, mas é um projeto nosso, é uma meta nossa conseguir esse recurso para fazer realmente um levantamento cadastral, onde a gente possa saber o que temos de drenagem, microdrenagem, macrodrenagem, boca de lobo, poço de visita, ou seja, todos os elementos que compõem a drenagem da nossa cidade.”
Ele aponta que essa falta de dados dificulta o trabalho preventivo de manutenção do sistema. “Eu tendo um mapa da drenagem toda da cidade, facilita. Eu vou dar um exemplo. Nós tivemos, na última chuvarada, um volume de água que cruzou a via e invadiu um condomínio no bairro Vendas. Quando nós fomos ver o problema, ali tem um dispositivo de drenagem que é uma bacia de contenção. Ela não estava cadastrada no município e, ao longo do tempo, foi enchendo, enchendo e assoreou completamente, entupiu e extravasou. A água passou por cima e chegou ao condomínio. Então, quando você não tem esse cadastramento, muitas vezes você vai atender a demanda quando ela surge e fica um pouco limitado na manutenção preventiva, que é o ideal para essa questão do dispositivo de drenagem.”
O secretário aponta ainda que vem trabalhando em alinhamento com a concessionária para evitar que, nestes eventos climáticos extremos, por conta do grande volume, a água extravase e chegue à rede coletora de esgoto. “Olha, nós temos tido uma relação, na questão técnica, de bastante alinhamento com a concessionária. Todas as vezes que surge um problema, a gente apura as responsabilidades. Se é da concessionária, ela já atua. Se é nossa, a gente já atua. E a gente não tem tido muito esse problema de sobrecarga nos poços de visita de esgoto. Quando a gente vê uma tampa de bueiro, de poço de visita, que estourou, que saiu para cima e está jogando água para fora, em regra, é poço de visita de drenagem de águas pluviais. Então, não é de esgoto. Mas, caso contrário, seja relacionado a esgoto, imediatamente a gente aciona a companhia concessionária para que ela possa solucionar o problema.”
Planejamento conjunto: drenagem e esgoto
A relação entre a drenagem urbana e o sistema de esgoto é um dos pontos centrais do planejamento de infraestrutura de Campo Grande. Com o aumento da frequência de chuvas intensas e a pressão sobre as redes subterrâneas, o alinhamento entre os dois sistemas se tornou essencial para evitar sobrecargas, extravasamentos e danos estruturais.

Segundo Gabriel Buim, diretor-presidente da Águas Guariroba, concessionária responsável pelo abastecimento de água e pela coleta e tratamento de esgoto na capital, o enfrentamento desse cenário exige um trabalho contínuo e integrado com o poder público municipal.“A drenagem urbana tem impacto direto sobre o sistema de esgoto. Quando não há drenagem adequada, a água de chuva acaba sobrecarregando as redes, principalmente em locais onde há ligações irregulares de águas pluviais na rede de esgoto. Essa sobrecarga pode provocar extravasamentos e aumentar o volume que precisa ser tratado, o que reforça a importância de um planejamento conjunto entre drenagem e saneamento”, afirma.
Buim destaca que a empresa vai fazer investimentos substanciais na expansão do sistema de esgotamento sanitário de Campo Grande nos próximos anos, com 697 quilômetros de novas redes e 66 mil ligações domiciliares até 2028. Os investimentos, que somam cerca de R$ 750 milhões, integram uma política de universalização que deve elevar a cobertura do esgoto coletado de 94% para 98%, mantendo o tratamento em 100% do volume captado, o que consolida Campo Grande entre as capitais mais saneadas do país.
Ele relembra que “a cidade investiu quase R$ 2 bilhões nas últimas duas décadas. Em 2003, apenas 19,1% da população tinha acesso à rede de esgoto; hoje, o índice quadruplicou”.Esse avanço é resultado de programas estratégicos como o Sanear Morena, lançado em 2005, e o Campo Grande Saneada, implantado nos últimos anos, que viabilizaram a construção de mais de 3,2 mil quilômetros de redes e 304 mil ligações domiciliares. Só na fase mais recente foram implantados 580 quilômetros de rede, beneficiando diretamente 834 mil pessoas.
“Nosso foco é garantir que Campo Grande alcance a universalização do esgotamento sanitário, acompanhando o crescimento da cidade e assegurando que nenhuma nova área fique descoberta”, explica o diretor-presidente.
Com esse contexto de expansão da rede coletora de esgoto, Buim aponta que a integração entre obras de drenagem, pavimentação e saneamento é uma das prioridades da concessionária e da prefeitura. “Os projetos são discutidos de forma conjunta, de modo que o saneamento básico caminhe junto com as obras de drenagem e expansão urbana. Um exemplo é o bairro Rita Vieira, onde a rede de esgoto foi implantada antes das obras de drenagem e asfalto. Essa sinergia é essencial para que Campo Grande siga como referência nacional em gestão de saneamento e infraestrutura”, afirma.

Além da ampliação da rede, a empresa mantém um programa permanente de manutenção e limpeza preventiva, com equipes especializadas e operações constantes. “Os principais problemas decorrem do uso incorreto da rede de esgoto, seja por ligações irregulares de água pluvial ou pelo descarte inadequado de resíduos. Isso pode gerar entupimentos, extravasamentos e até retorno de esgoto em alguns pontos da cidade. Por isso, realizamos programas e campanhas de conscientização junto à comunidade, escolas e empresas, explicando a importância do uso correto das redes”, detalha.
A concessionária também atua em frentes de fiscalização, que resultam na retirada de mais de 650 toneladas de materiais irregulares das redes de esgoto todos os anos, entre plásticos, panos, gordura e areia. “Esses resíduos não deveriam estar ali. Além de danificar a rede, comprometem o funcionamento do sistema e aumentam o risco de extravasamento. Por isso, é fundamental que a população compreenda o papel de cada estrutura: a rede de drenagem é para águas pluviais e a de esgoto, apenas para efluentes domésticos”, reforça Buim.
O planejamento da Águas Guariroba projeta o crescimento urbano da capital para os próximos 20 anos, antecipando a chegada de novos loteamentos e empreendimentos verticalizados. Antes de qualquer expansão, a concessionária realiza estudos de viabilidade técnica e dimensiona a infraestrutura de saneamento necessária, evitando retrabalhos e garantindo que o desenvolvimento urbano ocorra de forma ordenada e sustentável.
Buim acrescenta que, em períodos de chuvas intensas, ainda ocorrem registros de sobrecarga em pontos específicos da cidade, especialmente onde a drenagem ainda não está completamente estruturada. “Nesses casos, atuamos de forma imediata, com limpeza, desobstrução e reforço operacional. Além disso, nossos projetos mais recentes já estão sendo executados de forma integrada com as obras de drenagem, justamente para evitar esse tipo de ocorrência no futuro.”
Risco à população
Com o esforço para ampliar a drenagem e a rede coletora e de tratamento de esgoto avançando em parceria entre a prefeitura e a concessionária, um dos maiores desafios nos dias de chuva extrema continua sendo o impacto imediato sobre a saúde pública. É nesse ponto que, segundo o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Eduardo de Castro Ferreira, o risco se torna crítico.
Ele alerta que as enchentes, enxurradas e alagamentos criam um ambiente de alto perigo sanitário. “É fundamental que todas as pessoas entendam esse perigo, que pode levar à mistura da água da chuva com esgoto [quando ocorre o extravasamento do sistema] e lixo. O risco não está apenas na força da água, mas naquilo que ela carrega, formando um caldo de contaminação que ameaça a saúde de toda a comunidade afetada”, afirma.
De acordo com Ferreira, as doenças mais associadas a esse tipo de contato são transmitidas pela via fecal oral, quando fezes e esgoto chegam à boca, mesmo que microscopicamente. Ele explica que há dois grupos de risco, o imediato, com doenças que aparecem dias após o contato, e o de médio prazo, que pode surgir semanas depois.
“Entre os riscos imediatos estão as gastroenterites, que causam diarreia e vômito, além de doenças como cólera, salmonelose e hepatite A. Em médio prazo, podem ocorrer casos de leptospirose, tétano, dermatites e micoses. A leptospirose é a mais perigosa, transmitida pela urina de ratos presentes na água suja, e pode entrar no corpo por pequenos cortes na pele ou pelas mucosas”, detalha.

Os grupos mais vulneráveis, segundo o pesquisador, são crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas. “Esses grupos correm riscos maiores porque têm imunidade mais baixa e resistência física reduzida. Nas crianças, o sistema imunológico ainda está em desenvolvimento e comportamentos como brincar na lama e levar as mãos à boca aumentam a exposição. Já nos idosos e em pessoas com doenças crônicas, o risco é agravado pela imunidade comprometida e pelas comorbidades, como diabetes e problemas cardíacos ou renais”, observa.
Ferreira destaca que há medidas emergenciais simples que podem evitar infecções graves. “Nunca se deve andar descalço na lama ou na água da enchente, enxurrada ou alagamento, mesmo que pareça limpa. O uso de botas e luvas é essencial, principalmente durante a limpeza das casas após o recuo da água. Qualquer ferida, mesmo pequena, pode servir como porta de entrada para bactérias e vírus”, explica.
Ele também orienta sobre o consumo de água e alimentos. “Se houver suspeita de contaminação no abastecimento, é preciso ferver a água por pelo menos cinco minutos ou tratá-la com hipoclorito de sódio (água sanitária). E todos os alimentos e medicamentos que tiveram contato com a água da enchente devem ser descartados imediatamente, mesmo que pareçam intactos.”
Outro ponto de atenção é o contato indireto com objetos contaminados. O pesquisador afirma que superfícies e pertences atingidos pela água ou pela lama também podem representar risco. “Esses materiais devem ser considerados contaminados, mesmo dias depois. No momento da limpeza, o ideal é usar luvas e botas e evitar varrer o local seco, porque a poeira pode conter micro-organismos e ser inalada. O ambiente deve ser lavado com solução desinfetante à base de cloro ou água sanitária.”
Para reduzir os impactos coletivos à saúde, Ferreira aponta a necessidade de investimento continuo em infraestrutura e planejamento urbano. “A principal medida é garantir a separação entre o esgoto doméstico e a rede de drenagem pluvial. Quando essas redes se misturam, há o risco de retorno de esgoto para as ruas e para dentro das casas durante as enchentes. Além disso, é fundamental realizar manutenção constante, limpeza de bueiros e galerias, e campanhas de educação ambiental para reduzir o descarte incorreto de lixo”, ressalta.
O pesquisador reforça que o lixo é um dos principais agravantes do problema e um vetor de doenças. “O acúmulo de resíduos orgânicos atrai roedores, cuja urina contamina a água com leptospirose. Por isso, o manejo adequado do lixo é tão importante quanto a drenagem e o saneamento”, adverte. Ele também defende a criação de sistemas municipais de vigilância em saúde capazes de monitorar a qualidade da água, promover campanhas de vacinação contra tétano e hepatite e distribuir kits de higiene às famílias afetadas logo após as enchentes e alagamentos. “As pessoas só vão se proteger se tiverem consciência do risco e souberem como agir para evitá-lo. Informação é a primeira linha de defesa”, conclui.
Sistema de alerta
Com a ocorrência cada vez mais frequente de eventos climáticos extremos, que podem provocar grandes volumes de chuva em pequenos intervalos de tempo, sobrecarregando os sistemas de drenagem existentes ou evidenciando a falta deles em alguns locais, o que, por sua vez, pode saturar redes de coleta de esgoto, cresce em importância a análise, coleta e tratamento de dados hidrológicos e meteorológicos, tanto para nortear o planejamento urbano da cidade quanto para orientar ações emergenciais em situações críticas.

Nesse contexto, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com estudiosos de outras instituições e a prefeitura de Campo Grande, estrutura um sistema de monitoramento e alerta de cheias e inundações voltado às bacias urbanas da capital sul-mato-grossense.

A iniciativa é liderada pelo professor da Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia (FAENG), Paulo Tarso Sanches de Oliveira, no âmbito do projeto Previsão de Extremos Hidrológicos de Curto e Curtíssimo Prazo em Áreas Urbanas (PEHAU).A base do sistema foi montada a partir de 2017, quando a equipe passou a organizar e expandir a rede instalada pela prefeitura em 2014.
Atualmente, o conjunto reúne 54 estações pluviométricas distribuídas na área urbana, sete sensores de nível d’água, duas estações meteorológicas, dois sistemas de câmeras para monitorar córregos, equipamentos de medição de vazão e batimetria e acesso ao radar meteorológico de Jaraguari. Esses dados alimentam modelos hidrológicos e hidráulicos que simulam o comportamento das bacias sob diferentes chuvas, mapeiam áreas de risco, testam cenários de expansão urbana e subsidiam obras de controle de cheias.
“Com isso, a gente consegue fazer uma modelagem hidrológica, uma representação do sistema real. Vou saber que quantidade de água de chuva que atinge, quanto vai virar vazão. E dessa vazão, depois, com o modelo hidráulico, eu sei quanto que isso vai extravasar da calha do rio e o que vai gerar a inundação.”
Ele aponta que esses dados são fundamentais para o planejamento da expansão urbana do município, sendo possível identificar quais regiões oferecem mais riscos de ocupação ou quais são mais seguras. “Ou ainda, se eu fizer uma obra de contenção, por exemplo, um reservatório, se ele vai resolver o problema… Eu consigo ver o seguinte: se eu impermeabilizar toda a cabeceira da bacia, o que vai acontecer aqui embaixo? O modelo me ajuda a prever o que vai acontecer. Então, eu não preciso deixar o problema acontecer para poder tomar uma decisão”, explicou ele.
Segundo Paulo Tarso, como tem caráter aplicado, o objetivo de todo esse trabalho é transformar dados em subsídios para decisões públicas. “É um sistema de alerta que pode ajudar, mas a gente não resolve o problema. Quem vai resolver esse problema é o município”, destaca.
O projeto se desdobrou em várias outras linhas de pesquisa. Essas iniciativas, financiadas por instituições como a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), permitiram a aquisição de novos equipamentos para a coleta e o tratamento de dados.
Entre eles, novos sensores de nível e estações meteorológicas, além de um radar RQ-30, capaz de estimar velocidade e nível do escoamento sem contato com a água, recurso necessário em cheias de pico rápido, quando a força do fluxo torna perigosa e imprecisa a medição direta, e um drone equipado com sensor LiDAR, que faz uma varredura a laser e é capaz de “ver” sob a copa das árvores e reconstruir, em três dimensões, o relevo e o canal dos córregos.

Com isso, a rede avançou além do Prosa e passou a cobrir também as bacias do Segredo, Bandeira, Cabaça e Lageado. A modelagem já concluída no Prosa, Cabaça, Bandeira e Lageado embasa agora a priorização do Segredo, classificado pelos pesquisadores como uma das áreas mais críticas.
O próximo passo é formalizar ainda em 2025 um convênio entre a prefeitura municipal de Campo Grande, a Agência de Regulação (Agereg), a Planurb, a UFMS e a Fapec. De acordo com o professor, a parceria assegurará manutenção, operação e expansão da rede, fortalecerá a governança dos dados e reduzirá a dependência tecnológica de equipamentos proprietários.
A cooperação também integra um projeto do CNPq com o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), responsável por fornecer o input meteorológico antecipado que alimenta os modelos hidrológicos e permitirá a emissão de alertas prévios aos órgãos municipais.
“Esse é o objetivo das nossas pesquisas, ajudar a chegar em uma condição como essa. Onde, com uma antecedência da condição meteorológica, a gente simule já as áreas que podem ser afetadas e emitir um alerta para a prefeitura ou para o setor público tomar a decisão. Isso aí é um dos objetivos dos nossos projetos. E, com certeza, isso pode ser alcançado. Isso não é nada hoje em dia com os inputs que existem e com as informações que temos. Não é nada muito complexo de ser feito”, destacou o professor.

Dentro da rede de pesquisadores que atua no projeto, André Almagro monitora os dashboards que agregam dados quase em tempo real das unidades de monitoramento, como a estação meteorológica instalada no Parque dos Poderes. Os registros de precipitação, temperatura, umidade, vento e pressão são coletados a cada cinco minutos e enviados por satélite em uma banda da Agência Espacial Norte-Americana (NASA), de hora em hora, para atualização automática do painel.
Além disso, a equipe mantém séries de nível em seis a sete pontos estratégicos nos córregos do Prosa e do Segredo, com transmissão via rede celular e rotinas de manutenção determinadas pela qualidade do sinal, consumo de bateria e segurança física dos equipamentos. Ele destacou que as leituras em tempo quase real reduzem incertezas nos modelos e ajudam a comunicar risco com antecedência.

Para acelerar as simulações e ganhar precisão topográfica, o doutorando Leonardo de Souza Bruno conduz, no projeto, um mapeamento de alta resolução do terreno urbano. A estratégia combina fotogrametria de imagens aéreas com varredura a laser por drone com sensor LiDAR.
Esses modelos digitais alimentam a etapa hidráulica e encurtam o tempo de processamento. No Prosa, uma execução 2D tradicional leva cerca de três horas e meia a quatro horas, enquanto a meta do grupo é rodar quadros equivalentes em menos de meia hora por meio de redes neurais de inteligência artificial (IA) treinadas com dados reais de chuva e de campo.“Queremos construir uma rede neural que faça isso de forma rápida e eficiente”, disse ele, ao frisar que as imagens do drone e as séries observadas formam o conjunto de treinamento do algoritmo.

Já o pesquisador Tiago Souza Mattos concentra esforços na instalação, operação e reposicionamento dos equipamentos de campo e na avaliação de modelos numéricos capazes de se acoplar às previsões atmosféricas. Segundo ele, a equipe testa um arcabouço computacional que conversa com modelos climáticos operacionais e devolve níveis d’água e manchas de inundação com maior velocidade de processamento. O objetivo é encadear previsão do tempo, transformação chuva-vazão e propagação no canal de drenagem para gerar mapas táticos de risco. Ele aponta que pretende, até o fim do ano, apresentar ao professor Paulo a validação de uso desse sistema no projeto.
O fluxo de trabalho do sistema segue três etapas. Primeiro, coleta e qualidade de dados: chuvas, níveis, topografia, uso do solo e imagens alimentam um repositório calibrado por equipamentos de campo, pelo radar de Jaraguari e por evidências externas de eventos passados, como fotos, vídeos e matérias jornalísticas que mostram a extensão real das cheias e ajudam a ajustar cotas e manchas.
Na sequência, a equipe calibra e valida os modelos hidrológicos e hidráulicos, inclusive com aprendizado de máquina, para rodar cenários de curto e curtíssimo prazo. Por fim, essas simulações recebem previsões meteorológicas do CPTEC/INPE e produzem mapas de risco, linhas de cota, pontos de extravasamento e estimativas de tempo de resposta, que podem orientar alertas, rotas de socorro e decisões de engenharia.
“Isso aí é o objetivo das nossas pesquisas. Com uma antecedência da condição meteorológica, simular as áreas que podem ser afetadas e emitir um alerta para a prefeitura tomar a decisão”, resumiu o professor.

Apesar da amplitude positiva do projeto, os pesquisadores também enfrentam dificuldades típicas do monitoramento em áreas urbanas, como furto e vandalismo de sensores, danos por eventos extremos e zonas de sombra de comunicação. Em trechos com vegetação, por exemplo, a transmissão celular exige visitas de manutenção mais frequentes. Em outros pontos, a força da água danificou suportes e tubulações, exigindo redesenho da instalação.
Para mitigar riscos e reduzir custos, a equipe estuda desenvolver parte dos dispositivos com equipes de computação e engenharia da própria universidade, o que diminuiria a dependência de software e hardware proprietários. A meta é unificar os 54 pluviômetros municipais, os sensores acadêmicos e os módulos que serão reativados neste período chuvoso em uma malha única e confiável.

Na aplicação prática, o sistema oferece respostas para o planejamento urbano e obras de drenagem. É possível simular a impermeabilização crescente da cabeceira, testar reservatórios de detenção, compará-los em custo-benefício e indicar faixas de preservação onde a ocupação intensifica o risco. A mesma lógica vale para novos empreendimentos. Com as ferramentas, o poder público pode estimar o impacto de lotes, avenidas ou galerias sobre o regime de escoamento e evitar investimentos ineficazes.
A equipe reforça que os dados captados indicam que urbanização acelerada agrava a severidade dos eventos, mas que políticas embasadas em dados conseguem reduzir danos, priorizar intervenções e comunicar risco com antecedência à população.
Infraestrutura verde para proteger a infraestrutura cinza
A arquiteta e urbanista Camila Amaro de Sousa, conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso do Sul (CAU-MS) e doutora em Tecnologias Ambientais, também ressalta a importância do investimento em dados climáticos e hidrológicos para antecipar e mitigar os desastres causados por eventos climáticos extremos, mas defende um novo paradigma no planejamento urbano da cidade, com investimentos em soluções que aliem tecnologia, planejamento e natureza.
“Historicamente, o maior erro é a desconsideração do meio natural. Ocupamos áreas de várzea e leitos de rios sem a devida proteção, tratando rios e córregos como meros canais de planejamento. Também houve foco excessivo na impermeabilização, com muito asfalto e concreto, o que transforma a cidade em uma superfície rígida que repele a água, ao invés de absorvê-la”, afirma. Veja o vídeo com a entrevista completa abaixo:
Segundo a especialista, outro equívoco recorrente está no dimensionamento inadequado da drenagem urbana. “Nossas galerias não foram projetadas para a intensidade das chuvas extremas que vemos hoje. Esse subdimensionamento leva a uma sobrecarga que tem efeito cascata, afetando a rede coletora de esgoto. Embora Campo Grande utilize um sistema separador, o problema surge nas ligações clandestinas, quando a água de chuva é despejada ilegalmente na rede de esgoto, provocando o transbordamento e o retorno de material contaminado para as ruas e residências. De um problema de infraestrutura, passamos rapidamente a um grave problema de saúde pública e ambiental.”
Camila defende que o planejamento urbanístico precisa integrar o plano diretor ao plano municipal de saneamento básico, promovendo um zoneamento mais inteligente e um desenho urbano sensível à água. “As soluções de drenagem não devem ser apenas tubulações enterradas, mas parte da paisagem, como ruas verdes e canteiros de absorção. Essas infraestruturas urbanas ajudam a reter e infiltrar a água da chuva de forma natural”, explica.
Entre as alternativas arquitetônicas e urbanísticas que poderiam reduzir os efeitos da impermeabilização, a arquiteta cita medidas aplicáveis em diferentes escalas. “Em nível de lote, é preciso incentivar o uso de telhados verdes, cisternas de retenção de água de chuva e pisos permeáveis em calçadas e estacionamentos. Em escala urbana, devemos implantar infraestrutura verde, como jardins de chuva, valas de infiltração, biovaletas e pavimentos drenantes em vias de menor tráfego e parques.”
A especialista explica que o conceito de “cidade-esponja” inverte a lógica tradicional do urbanismo. “Em vez de repelir a água com canalizações, a cidade é transformada em uma grande esponja que absorve, retém, filtra e reutiliza a água da chuva. A ideia é maximizar a infiltração e o armazenamento, integrando a infraestrutura verde, como parques lineares, praças e jardins, com a infraestrutura cinza, formada pelas galerias e redes de drenagem. A água passa a ser vista como um recurso valioso e não apenas como um problema a ser drenado.”
Para Camila, Campo Grande tem condições ideais para adotar esse modelo. “Com seu clima tropical e chuvas intensas e concentradas, a cidade é perfeita para soluções de retenção. A topografia, que não é excessivamente acidentada, facilita a criação de bacias de amortecimento e sistemas de bioretensão. A bacia do Rio Anhanduí, por exemplo, exige esse olhar integrado. Precisamos usar o solo e a paisagem ao nosso favor.”
A arquiteta propõe um conjunto de medidas práticas para aproximar a capital do modelo de cidade-esponja. “No curto prazo, ações como o IPTU verde e incentivos fiscais para proprietários que adotem soluções permeáveis e de retenção de água são fundamentais. Também é preciso intensificar a fiscalização contra ligações irregulares de drenagem no esgoto. No médio prazo, podemos transformar as margens dos córregos em parques lineares multifuncionais, que funcionem como grandes reservatórios temporários de cheias, e implantar projetos-piloto de jardins de chuva e outras soluções baseadas na natureza em áreas críticas de alagamento.”
Ela defende ainda uma revisão urgente do Código de Obras e a capacitação técnica das equipes municipais. “É preciso obrigar a retenção de água dentro dos lotes e exigir que o volume de escoamento dos novos empreendimentos não seja superior ao que ocorreria se o terreno estivesse em estado natural. Além disso, os empreendedores devem entender que a drenagem sustentável é um diferencial competitivo. O uso de infraestrutura verde agrega valor, segurança e resiliência aos empreendimentos diante das mudanças climáticas.”
Por fim, Camila destaca que a resiliência urbana deve ser tratada como investimento, e não como custo. “A resiliência é um investimento contínuo. Precisamos de planejamento integrado, monitoramento de dados climáticos e hidrológicos em tempo real e participação cidadã. O descarte correto do lixo, por exemplo, interfere diretamente na drenagem. Campo Grande precisa investir em infraestrutura verde para proteger sua infraestrutura cinza. É assim que garantimos um futuro mais seguro e sustentável para todos.”





