
A Fiocruz e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desenvolveram um novo teste rápido para o diagnóstico da hantavirose, que é capaz de detectar a doença em 15 a 20 minutos, com apenas uma gota de sangue. Com ótimo desempenho nos ensaios realizados, o produto obteve registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Também conhecida como síndrome cardiopulmonar causada por hantavírus, a doença tem alta taxa de letalidade: cerca de 40% dos pacientes não resistem ao agravo. A infecção pode ser provocada por diversos hantavírus, que são transmitidos para as pessoas por roedores silvestres, popularmente chamados de ratos do mato.
No Brasil, apesar da doença ser considerada endêmica pelo Ministério da Saúde (MS) em áreas rurais, silvestres e periurbanas, onde há maior contato humano com roedores silvestres, a falta de suspeita do diagnóstico em algumas localidades é considerável. A distribuição estratégica de um teste rápido pode levar à detecção precoce de casos, acelerando o diagnóstico e aumentando as chances de recuperação dos pacientes, salvando vidas.
A ferramenta foi idealizada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e desenvolvida em parceria com o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ). O projeto contou com financiamento da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e do Programa Inova Ceis, da Fiocruz.
A importância da iniciativa é destacada pela médica infectologista Elba Lemos, idealizadora do teste e coordenadora do Laboratório de Referência Regional para Hantaviroses junto ao Ministério da Saúde, vinculado ao Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do IOC/Fiocruz.
Atualmente, o diagnóstico laboratorial do agravo é realizado apenas nos serviços de referência, como o IOC/Fiocruz, que recebe amostras de diversos estados do país. Segundo Elba, o teste rápido pode ser um “divisor de águas”, orientando o atendimento inicial dos pacientes, enquanto análises de confirmação são realizadas pelos serviços de referência.
“A hantavirose é predominante em áreas rurais remotas e pode ter evolução rápida para insuficiência respiratória. Por isso, a letalidade é alta. Um teste rápido, que pode ser realizado na unidade de saúde, com resultado em até 20 minutos, é muito importante para orientar o manejo do paciente e salvar vidas”, declara Elba.
O gerente do Departamento de Desenvolvimento de Reativos para Diagnóstico de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Edimilson Domingos da Silva, chama a atenção para o ótimo desempenho do kit nas avaliações realizadas até agora.
Nos experimentos realizados em Bio-Manguinhos/Fiocruz foi obtida sensibilidade de 94% e especificidade de 100%, sinalizando alta capacidade de detectar a doença e baixíssima probabilidade de reações falso-positivas em amostras verdadeiramente negativas para hantavirose ou referentes a outras doenças.
“Estes resultados foram muito animadores, pois a introdução do kit de fácil aplicação, sem a necessidade de ambiente laboratorial, vai ter um impacto relevante na abordagem aos afetados pela doença. Importante salientar que, com este nível de especificidade, a diferenciação entre hantavirose e dengue vai auxiliar muito a conduta clínica no tratamento dos pacientes”, afirma Edimilson.
O projeto uniu equipes da Fiocruz e UFRJ. Além de Elba e Edimilson, lideraram a iniciativa Renata Oliveira, chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do IOC/Fiocruz; Karen Trinta, pesquisadora de Bio-Manguinhos/Fiocruz; Ronaldo Mohana Borges, chefe do Laboratório de Biotecnologia e Bioengenharia Estrutural do IBCCF/UFRJ; e Janaína Mansur, então pesquisadora de pós-doutorado do mesmo laboratório da UFRJ.
Desenvolvimento tecnológico

O diagnóstico laboratorial da hantavirose é realizado por meio da detecção de anticorpos contra o hantavírus, que são produzidos pelo sistema imune dos pacientes para enfrentar o patógeno e aparecem no sangue logo após a infecção. Por isso, para identificar a doença, os exames devem conter proteínas virais que sejam capazes de se ligar aos anticorpos.
Para compor o novo teste, cientistas do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do IOC/Fiocruz selecionaram a sequência genética de uma proteína viral, chamada de proteína do nucleocapsídeo, de dois diferentes hantavírus. A escolha considerou características dos microrganismos e da resposta imune dos pacientes.
“Contemplamos o hantavírus causador de síndrome cardiopulmonar nas Américas, que possui vigilância estruturada no Brasil, e o hantavírus responsável por casos de febre hemorrágica com quadro renal, que tem distribuição mundial e já foi descrito no território brasileiro, mas ainda não tem vigilância estabelecida no país. Isso torna o teste mais abrangente e amplia o leque do diagnóstico diferencial com outras doenças”, afirma Renata.
Especialistas na produção de proteínas recombinantes, os pesquisadores Laboratório de Biotecnologia e Bioengenharia Estrutural do IBCCF/UFRJ realizaram a expressão, purificação e caracterização destas proteínas virais, utilizando bactérias para produzir as moléculas, como se fossem fábricas.
“Com essa metodologia conseguimos produzir as duas proteínas recombinantes com a estrutura tridimensional correta para serem identificadas pelos anticorpos que circulam no sangue dos pacientes infectados por hantavírus. Assim, elas podem ser usadas como um detector de anticorpos nos testes”, aponta Ronaldo.
Por meio de acordo de parceria, a UFRJ forneceu as proteínas e transferiu a tecnologia de produção para Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz que atua no desenvolvimento tecnológico e fabricação de vacinas, kits para diagnóstico e biofármacos.
A equipe da Fiocruz desenvolveu o kit para teste rápido, combinando as proteínas virais recombinantes e substâncias reagentes para possibilitar o diagnóstico em uma plataforma de fácil aplicação.
Produzido em boas práticas de fabricação, o produto conta com controle interno e estabilidade em temperatura de 2ºC a 30ºC, podendo ser armazenado dentro ou fora da geladeira caso a temperatura ambiente se mantenha nesse patamar.
Para avaliação de desempenho dos testes, a Fiocruz contou com colaboração dos Laboratórios Centrais de Saúde Pública do Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além da Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais.
Após o registro na Anvisa, o kit foi disponibilizado para algumas unidades de saúde através de parcerias no contexto de atividades de pesquisa. Em Tangará da Serra, no Mato Grosso, por exemplo, um caso de hantavirose foi diagnosticado com aplicação do exame no começo de setembro.
“A Secretaria Municipal de Saúde nos informou que o resultado do teste rápido contribuiu para o melhor atendimento e a completa recuperação do paciente”, comemora Elba, observando que, de acordo com os protocolos vigentes, o resultado do teste rápido deve ser posteriormente confirmado no âmbito do serviço de referência.
Três lotes-piloto do teste rápido de hantavirose foram produzidos para solicitação do registro na Anvisa. “A partir da aprovação, Bio-Manguinhos tem capacidade para escalar a produção conforme as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS)”, ressalta Edimilson.
Alerta para circulação da doença
De acordo com o MS, a hantavirose ocorre em todas as regiões do Brasil, com maior concentração de casos no Sul, Centro-Oeste e Sudeste. De 2015 a 2024, foram 610 registros no país, com 232 mortes. Notificações preliminares deste ano somam 11 casos, incluindo 6 mortes.
As infecções por hantavírus ocorrem principalmente em áreas rurais, pela inalação de partículas virais liberadas na urina, fezes e saliva de roedores, que ficam suspensas no ar na forma de aerossóis. Os casos são frequentemente associados ao contato com ratos do mato, atividades agrícolas (por exemplo, limpeza de casas e galpões fechados, desmatamento, aragem da terra e plantio) e ecoturismo.
O quadro clínico inicial da hantavirose é semelhante a muitas doenças virais, incluindo febre, dor nas articulações, na cabeça e no abdômen, além de manifestações gastrointestinais, como vômito e diarreia. Com a progressão da doença, os pacientes podem apresentar também dificuldade de respirar, respiração e batimentos cardíacos acelerados, tosse e pressão baixa.
A coordenadora do Laboratório de Referência Regional para Hantaviroses aponta a necessidade de conscientização dos profissionais de saúde para identificar o agravo.
“É comum que os casos de hantavirose sejam inicialmente tratados como se fossem dengue, o que aumenta a letalidade da síndrome cardiopulmonar por hantavírus. Para identificar a hantavirose, o médico precisa conversar com o paciente e descobrir se ele esteve em área com risco de transmissão de hantavírus”, alerta Elba.
Embora não exista um medicamento específico contra o hantavírus, o diagnóstico precoce da doença é fundamental para que os pacientes recebam o tratamento adequado, incluindo terapias para controlar os sintomas e medidas de suporte que podem ser decisivas para salvar vidas.




